A morte de um voluntário francês na Ucrânia é a primeira evidência clara da existência de pelo menos alguns extremistas de extrema-direita entre os combatentes estrangeiros que se reuniram no país para lutar contra as forças russas. Wilfried Bleriot, 32, foi morto em ação, de acordo com a Legião Internacional da Ucrânia em um post no Facebook de 4 de junho de 2022. Na foto de Bleriot postada pela Legião Internacional – grupo que foi formado após a invasão da Rússia em fevereiro e está aberto a receber combatentes voluntários de todo o mundo –, ele exibe na frente e no centro de seu colete o distintivo em preto e branco da chamada Divisão Misantrópica, conhecida como uma ala abertamente fascista e voluntária do ultranacionalista Batalhão Azov, da Ucrânia.
O canal de Telegram da Divisão Misantrópica, com conteúdo repleto de violência e ódio, foi o primeiro a anunciar a morte de Bleriot, um dia antes, em 3 de junho. O post dizia que ele morreu em 1º de junho em Kharkiv, e incluía uma foto em que Bleriot, magro e barbudo, usa uma camiseta com os dizeres “Divisão Misantrópica”.
Em 2018, o Los Angeles Times descreveu a Divisão Misantrópica como “um dos muitos grupos neonazistas que cresceram rapidamente em toda a Ucrânia nos últimos anos”. Em 2020, o Daily Beast caracterizou o grupo como “a ala militante de voluntários estrangeiros do batalhão neonazista Azov da Ucrânia”. O Guardian, em 2014, também disse que a Divisão Misantrópica “está ligada ao batalhão Azov”. Há poucas outras menções a seu respeito nos arquivos de notícias.
Bleriot era um “homem que lutou contra o bolchevismo e o antifascismo toda a sua vida”, segundo o post do Telegram, um “irmão de armas”, que morreu defendendo a Europa e a Ucrânia de “hordas asiáticas.” Entre os membros do grupo de conversas, Bleriot se tornou um mártir, um camarada caído a ser lamentado e celebrado. Um meme mostra uma roda do Sol Negro – ícone do ocultismo nazista – atrás de seu rosto sorridente.
Bleriot era de Bayeux, uma cidade do norte da França. Em uma entrevista com um repórter argentino, enviada ao Reddit em 3 de março, ele se identifica como normando, diz que está “pronto para matar russos” e “pronto para morrer.” Ele acrescenta que deixou dois filhos em casa, e começa a chorar. A família de Bleriot não foi encontrada para comentar. As tentativas de contato com as autoridades francesas para comentar se Bleriot era conhecido por eles também não tiveram sucesso.
Um porta-voz do Batalhão Azov, que começou por volta de 2014 como uma gangue de rua de extrema-direita, e desde então evoluiu para um regimento profissional de operações especiais do exército ucraniano, não respondeu imediatamente às perguntas sobre Bleriot e a Divisão Misantrópica. Mas em abril, eu me encontrei com Andriy Biletsky, o fundador do movimento Azov, na base do grupo em Kyiv. Eu não tinha ouvido falar da Divisão Misantrópica na época, mas perguntei a Biletsky sobre combatentes estrangeiros. “Temos voluntários de diversos países”, ele me disse. “Tivemos europeus, japoneses, pessoas do Oriente.” Ele também mencionou voluntários bielorrussos, georgianos, russos, croatas e britânicos. Ele salientou que alguns deles eram judeus. No entanto, “posso garantir que não há americanos”, disse ele. “Nem mesmo europeus ocidentais”, acrescentou, caindo em leve contradição.
A base do batalhão de Azov, nos arredores semi-industriais de Kyiv, ficava em uma fábrica soviética abandonada. Dentro do prédio principal, uma bandeira amarela, com o conhecido símbolo Wolfsangel de Azov no centro, estava pendurada nas vigas. Em dois lugares, havia relógios com o Sol Negro nas paredes; essas rodas solares, ou Sonnenrads, também encontradas no chão do castelo de Heinrich Himmler na Alemanha, são muito usadas por adeptos contemporâneos da ideologia nazista para sinalizar suas crenças supremacistas arianas. Os defensores de Azov dizem que são meros símbolos nativos ucranianos, que devem ser entendidos no contexto do Leste Europeu. De qualquer forma, as rodas solares, iluminadas por neon azul, sem dúvida traziam uma estética neonazista à base Azov. Havia soldados em trajes de batalha completos andando pelo ambiente, tão preparados e intimidadores quanto qualquer outro soldado na Ucrânia, além de duas mulheres que trabalhavam como secretárias. O andar térreo estava cheio de novos recrutas, exclusivamente jovens brancos, falando ucraniano e russo.
Desde que o Azov foi formado há cerca de oito anos, ele atrai uma constante controvérsia por sua ideologia quase fascista, defendida sem remorsos por Biletsky, além de supostos abusos contra os poucos grupos minoritários que existem na Ucrânia, incluindo os romani. Há muitas evidências fotográficas de combatentes Azov exibindo símbolos nazistas no campo de batalha (muitas vezes com a intenção de provocar a Rússia). O Batalhão Azov tentou limpar sua imagem nos últimos anos, apresentando-se como despolitizado, e agora é um componente oficial do exército ucraniano, não uma milícia independente. Porém, ele possui muito mais autonomia do que qualquer outro regimento do exército. O grupo se apresenta como um corpo de elite, e alcançou um extraordinário grau de prestígio e admiração aos olhos dos cidadãos ucranianos comuns por sua valente defesa de Mariupol, sua base de origem, que caiu sob domínio russo em 20 de maio, após um dramático cerco de três meses. Embora muitas centenas de soldados Azov tenham sido feitos prisioneiros, um número ainda maior de jovens ucranianos se alistaram para substituí-los.
“Azov está crescendo”, disse Maksym Zhorin, comandante de uma unidade de operações especiais do grupo em Kyiv, em abril. “Nossa ênfase está no futuro.” Ele acrescentou: “Pode parecer estranho, mas as ações da Federação Russa foram benéficas para nós.”
Como escrevi em um recente artigo para Harper’s, quando saí da base, vi um pequeno grupo de homens rondando do lado de fora do portão, e tive a impressão, pela sua aparência (traje paramilitar, tatuagens no pescoço, bonés de beisebol), que eram voluntários estrangeiros. Com vários soldados Azov ao lado de meu tradutor e de mim enquanto esperávamos por um táxi, não achei prudente me aproximar deles, mas os ouvi falando inglês. A única frase que captei com clareza, sobre o motor em marcha lenta de um veículo blindado, foi “legião estrangeira”. Além disso, não sei quem foi o responsável, mas “WHITE POWER” (“poder branco”) foi pintado com spray no quiosque bem na nossa frente, ao lado da entrada – em inglês, novamente.
A morte de Bleriot, a possível existência de mais extremistas como ele entre os combatentes estrangeiros da Ucrânia, e a ascensão de Azov como potência militar interna não devem ser tomadas como algo representativo da sociedade ucraniana, governo e forças armadas como um todo. A propaganda russa estaria convencendo as pessoas a acreditar que a Ucrânia e seus militares estão cheios de neonazistas, e completamente sob o domínio dos radicais russofóbicos. Essas falsidades desaparecem assim que você pisa no país. A Ucrânia tem um setor ultranacionalista bastante forte e agressivo, mas mesmo Azov, a força de extrema-direita mais poderosa e influente, continua sendo um movimento marginal. A Ucrânia é um dos maiores países da Europa e abriga diferentes grandes grupos. Seu presidente é judeu, um ex-comediante de televisão. Antes da invasão da Rússia, questões como corrupção e estagnação econômica eram problemas muito maiores na vida das pessoas comuns do que o espectro de gangues itinerantes de jovens fascistas. Caso os russos realmente estivessem preocupados com militantes neonazistas, ultranacionalistas e supremacistas brancos, eles procurariam em seu próprio país, onde tais movimentos florescem tanto quanto, se não mais, do que na Ucrânia.
Da mesma forma, Bleriot não deve ser considerado como representante da Legião Internacional do Exército Ucraniano. Em meio ao caos dos primeiros dois meses da guerra, a maioria dos estrangeiros que se reuniram na Ucrânia para lutar foi rejeitada e voltou para casa. A Legião Internacional só aceitava pessoas com substancial experiência militar, principalmente dos Estados Unidos e do Reino Unido. Bleriot disse a um jornalista argentino que havia servido um ano no exército francês e por pouco conseguiu ser aceito. Não há muitas dúvidas de que ele tenha assimilado a ideologia neonazista da Divisão Misantrópica, articulada em espaços como seu canal Telegram. Mas esses extremistas, isolados e em pequeno número, também encontram seu espaço no serviço militar dos Estados Unidos regularmente.
Quanto à Divisão Misantrópica, é difícil falar sobre sua verdadeira atuação e tamanho. A profundidade de sua real ligação com o Batalhão Azov também não é clara. Tomemos Bleriot, por exemplo. Não há indicação de que ele estava com alguma unidade Azov quando morreu em Kharkiv, no nordeste da Ucrânia, longe das principais áreas de operação do batalhão no sul. Pode ser que a Divisão Misantrópica não seja uma unidade do mundo real, com um líder e uma cadeia de comando, mas sim um bando militar indefinido ao qual qualquer pessoa online pode alegar pertencer.
Imagens facilmente acessíveis na internet mostram jovens do Reino Unido, França, Alemanha, Espanha, Polônia, Portugal, Brasil e outros lugares exibindo a bandeira estilo pirata do grupo, muitas vezes em conjunto com outros símbolos de ódio, e é possível encontrar fotos e vídeos de soldados ucranianos, que parecem estar em combate real, ostentando seus vários distintivos, emblemas e camisetas. Poderia se tratar de uma unidade militar coesa composta por voluntários estrangeiros, abrigada sob a proteção do Batalhão Azov, mas não consegui encontrar evidências convincentes, no momento, de que seja algo mais do que um meme tóxico do Telegram popularizado pela comunidade incel e seus fãs do Batalhão Azov, dos quais apenas alguns realmente estariam servindo na unidade.
A Legião Internacional, pouco organizada, que pode não ter nenhum comando central, é limitada em sua capacidade de vetar voluntários.
A verdadeira questão, quando se trata da legião estrangeira da Ucrânia e alguns dos personagens mais desagradáveis, ??que seu apelo internacional à guerra atraiu, é o tamanho da ameaça que eles representam aos seus países de origem. A Legião Internacional, pouco organizada, que pode não ter nenhum comando central, é limitada em sua capacidade de vetar voluntários. Criminosos radicais de todo o mundo, que apoiam a ideologia do “sangue e solo” de subculturas neonazistas como a Divisão Misantrópica, têm uma oportunidade muito real de viajar para a Ucrânia, obter treinamento militar e participar de fortes ataques armados, e de um conflito contra um inimigo tecnologicamente avançado. Caso sobrevivam, sua experiência de combate poderá dar-lhes confiança e capacidade para realizar atos de violência política em seus países de origem. Isso é um claro motivo de preocupação em um momento em que os incidentes de crimes de ódio e terrorismo doméstico estão aumentando.
No mesmo post do Facebook de 4 de junho em que anunciou a morte de Bleriot, a Legião Internacional também divulgou a morte de Björn Benjamin Clavis, um alemão de idade desconhecida. A foto dele mostra um homem que parece ter cerca de 30 anos, com cabelos cacheados e usando o uniforme da Força de Defesa Territorial da Ucrânia. Nas costas de sua mão direita há uma tatuagem inconfundível de uma Cruz de Ferro, que a Liga Antidifamação descreve como um “símbolo de ódio bastante usado” por “neonazistas e outros supremacistas brancos”.
É possível que Clavis tenha feito a tatuagem por motivos irrelevantes. Não se trata de um símbolo tão incomum. O logotipo da empresa de skate Independent Truck, por exemplo, se parece muito com uma Cruz de Ferro. O mesmo acontece com o distintivo dado para concursos de tiro no Exército dos Estados Unidos. No entanto, a análise da ADL indica que a exibição não racista da Cruz de Ferro ocorre principalmente nos Estados Unidos. Na Alemanha, terra natal de Clavis, ela está muito associada ao Terceiro Reich.
Tradução: Antenor Savoldi Jr.
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Fonte: https://theintercept.com/2022/07/15/ucrania-combatentes-estrangeiros-azov-neonazista/
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