E morreu Olavo de Carvalho. Talvez não tenha havido, no Brasil recente, nenhuma personalidade do mundo da cultura mais influente politicamente do que ele. O resultado dessa influência está aí: radicalismo ideológico, polarização e degradação do debate público. Por ocasião da data, gostaria de falar da minha própria experiência com o olavismo, que talvez ajude a entender a influência e o impacto que Olavo teve nessa geração.
Conheci Olavo nos idos de 2007, por meio de um texto famoso na época: “A tragédia do estudante sério no Brasil”. O texto tinha muitos elementos que mexiam com um jovem universitário. Olavo nos tratava como intelectuais em potencial e como vítimas de circunstâncias alheias a nós. Além disso, despejava uma multidão de autores de quem nunca tínhamos ouvido falar, o que, além de despertar a curiosidade, sugeria a ideia de que:
1) nossos professores eram ignorantes, e o Olavo era luz;
2) havia um complô para nos impedir o acesso a essas fontes de conhecimento.
Estávamos, na época, no segundo mandato de Lula, e o clima de antipetismo já estava instaurado, apesar dos altos índices de aprovação do presidente. O mensalão havia minado parte da credibilidade moral do governo. 2008, por exemplo, foi o auge do blog do Reinaldo Azevedo e o ano em que foi publicado o “País dos Petralhas”. Nesse caldo político, Olavo fazia a associação entre crise da cultura e degradação política, ligando o estado geral de ignorância ao projeto de poder da esquerda.
Mas noto que, ainda que a parte política fosse um estímulo adicional, Olavo arregimentava seguidores principalmente a partir de um jogo de vaidades juvenis. Jovens, de inteligência moderada e algum interesse intelectual, eram atraídos para um vórtice de ideias e autores de quem, como já disse, nunca tínhamos ouvido falar. O impacto, pelo menos em mim, foi tremendo: “seu professor nunca lhe falou deste filósofo? O maior do século 20?”
E Olavo era, sobretudo, um grande escritor (coisa que até os críticos admitem). E aqui, também, havia um texto clássico: “Aprendendo a escrever”. Se vocês lerem os dois em conjunto, verão mais ou menos o mesmo modus operandi – name dropping, críticas a professores e intelectuais, etc. No fundo, muitos de nós queríamos conhecer aqueles autores, escrever tão bem quanto Olavo e, principalmente, ter a autoconfiança e o estudo necessários para fazer o que ele falava que qualquer aluno seu conseguiria com três anos de estudos (depois aumentados para cinco, mais tarde para 10): “acabar com qualquer professor da USP num debate”. Notem que isso não faz nem sentido (o que significa acabar com alguém num debate?), mas era o suficiente para mexer com o orgulho e a petulância de jovens.
Esse sentimento era potencializado pela comunidade no Orkut do Olavo. Ali se reuniam “alunos e admiradores” do “Professor Olavo” ao redor do Brasil. Gente com interesses comuns e que, de algum modo, reforçavam uns nos outros o mesmo sentimento de querer se tornar um estudante sério. Olavo percebeu as demandas dessa comunidade e lançou o Curso de Filosofia. Lembro bem – e já tuitei sobre isso – que aquele parecia um momento histórico. No ano (acho que em 2009), alunos mais engajados trocavam materiais de aula, apostilas velhas, áudios de cursos antigos. Tudo isso reforçava ainda mais a lenda e o mito de que Olavo era um gigante do pensamento escondido e que, agora, teríamos acesso a uma vastidão de conhecimento.
Mas observem (e aqui está o pulo do gato): o público era formado, majoritariamente, por jovens e adultos sem formação acadêmica. Mas como eu e essa gente podíamos avaliar a qualidade de Olavo, dos autores que ele citava, de suas ideias? A resposta: não podíamos. O que fez a fama de Olavo nunca foi o valor de suas ideias, mas antes a combinação de barafunda de autores desconhecidos, o sentimento de comunidade, o clima de seita e a ideia de que estávamos resistindo a alguma ameaça (política, cultural, intelectual).
E esse era um traço marcante de Olavo: a discussão quase sempre se dava num plano meta-intelectual. Ele falava da crise da cultura, dos problemas da inteligência brasileira etc., mas raramente discutia as próprias ideias ou as ideias de alguém. No curso, por exemplo, poucas aulas eram dedicadas a analisar um argumento filosófico, e a esmagadora maioria era destinada a “desmascarar” erros dos outros. Façam o teste: perguntem aos seguidores quantas ideias originais (ou nem isso) de Olavo eles conseguem listar.
Os que conhecem um pouco mais sua obra do vão mencionar coisas como a Teoria dos Quatro Discursos (um livro academicamente fraco); a ideia de “conhecimento por presença” (totalmente desarticulada e desconexa). O intuicionismo radical (que ele nunca desenvolveu e, na prática, era utilizada para justificar suas ideias retiradas de lugar nenhum), a teoria do império do Jardim das Aflições (historicamente impreciso), o seu conceito de verdade (que nenhum autor de epistemologia aceitaria).
Mas havia, é claro, uma justificativa para não discutir ideias: porque, filosoficamente, o que interessava eram as “experiências dos filósofos” e não o que pensavam. O que isso significava na prática? Que o trabalho de lê-los e interpretá-los não era relevante.
Um dos exercícios que Olavo sugeria – a leitura lenta (uma frase por dia) de um autor (Louis Lavelle) – dava um exemplo: você lia uma frase e ficava refletindo (hummm, que experiência será que ele teve antes de escrever isso?). Não tinha isso de ler o livro todo, de situá-lo no contexto dos debates da época, na história de investigações da disciplina. O negócio era ter a “experiência”.
No fundo, sob o ponto de vista metodológico, Olavo fornecia as ferramentas para que alguém pouco letrado em filosofia falasse as maiores asneiras do mundo com a confiança de um especialista. Essa arrogância intelectual foi a grande marca que ele deixou nos seus alunos. E é por isso que tanta gente fala que teve a vida transformada por Olavo: poucos relatam terem aprendido algo, mas muitos que “se transformaram em algo”. E no que se transformaram?
O legado é a autoconfiança injetada em jovens e adultos de baixa formação e leitura, mas que se sentiam metodologicamente validados em sua própria ignorância. A filosofia do Olavo dava ferramentas para ignorantes se acharem inteligentes e julgarem os demais burros e estúpidos. Essa autoconfiança, essa violência – que no início era apenas intelectual – encontrou terreno fértil no bolsonarismo. E é aqui que os caminhos se cruzam: as ferramentas que o “ignorante intelectual” recebeu eram também ferramentas de radicalismo político.
Olavo dizia que estava formando uma “nova geração de intelectuais”, mas, no fundo, estava formando uma nova geração de militantes. Isso se percebia pelos cacoetes introjetados nos alunos, pela constante emulação que muitos faziam até dos jeitos do Olavo. O que essa geração “formada” por ele buscava não era estudo e conhecimento, mas sim validação e, de certa forma, poder: poder para se afirmar em relação a amigos e professores e, no limite, poder para se afirmar em relação aos esquerdistas. Esquerdistas que, note-se, eram inimigos não só pelas ideias, mas porque ocuparam o lugar na cultura que deveria ser do Olavo. Por que razão deveria ser dele? Perguntem hoje para os alunos que escrevem seus elogios. A resposta será: “porque o Olavo falou”.
Saí disso, para nunca mais voltar, há 10 anos. Quando vejo hoje jovens relatando a profunda transformação operada por Olavo, lembro dos meus tempos e nutro a esperança de que, assim como eu, eles também possam perceber o que percebi: que não havia nada ali.
The post ‘Não havia nada ali’: o que aprendi como aluno de Olavo de Carvalho appeared first on The Intercept.
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Fonte: https://theintercept.com/2022/01/25/olavo-de-carvalho-nao-havia-nada-ali-aluno/
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