Canetada de Bolsonaro permite que indústria do sal perpetue destruição ambiental no Rio Grande do Norte
Era fim da tarde de 4 de junho de 2019, uma terça-feira, quando Jair Bolsonaro recebeu no Palácio do Planalto uma comitiva do Rio Grande do Norte. Prefeitos, deputados federais, um senador e um punhado de empresários do estado foram ao encontro do presidente para testemunhar a assinatura de um documento há muito aguardado por eles.
Tratava-se do decreto federal 9.824, confeccionado sob medida para atender aos interesses do grupo liderado pelo deputado federal Beto Rosado, do Progressistas. Com campanhas eleitorais financiadas por indústrias que exploram salinas no litoral potiguar, ele havia feito lobby para contornar a legislação ambiental em benefício exclusivo delas. A região é responsável por nada menos de 95% da produção brasileira de sal, inclusive o de cozinha, e o decreto concedeu à indústria salineira do estado o status de atividade de interesse social.
Graças ao decreto, as salinas conseguiram o direito de seguir ocupando Áreas de Proteção Ambiental Permanente, ou APPs, em margens de rios, mangues e dunas. Bolsonaro usou a estratégia para driblar a legislação ambiental brasileira, que é bem clara: não permite nenhum tipo de atividade econômica nesse tipo de área.
O desejo do empresariado por uma canetada como a de Bolsonaro é antigo. Começou em 2013, quando órgãos ambientais passaram a questionar em processos administrativos e judiciais a ocupação das áreas utilizadas para o beneficiamento do sal marinho. Que estavam então em franca expansão, segundo estudos desses mesmos órgãos: foi de 1.979 hectares a 3.284 hectares – o equivalente a um quinto da área da capital do estado, Natal – em apenas quatro anos. As salinas estão nas APPS de três estuários, espalhados por oito municípios da costa norte do Rio Grande do Norte.
Mas bastaram meros quatro meses do governo Bolsonaro para que os argumentos brandidos durante anos sem resultado algum de repente passassem a fazer sentido perante autoridades que tem o dever constitucional de atuar para preservar o meio ambiente brasileiro.
O decreto assinado por Bolsonaro tomou por base justificativas assinadas pelos ministérios do Meio Ambiente, então liderado por Ricardo Salles, e da Economia, capitaneado por Paulo Guedes. Elas distorceram o Código Florestal de 2012, num exemplo antecipado do que Salles viria a chamar meses depois, na famigerada reunião ministerial de abril de 2020, de “passar a boiada”.
O processo administrativo que deu origem à confecção do decreto deixa claro a que ele se prestou. No ofício que encaminha à Presidência da República, já com a minuta do decreto, Salles deixa claro que o documento tem como base as considerações de dois sindicatos patronais do Rio Grande do Norte: o da Indústria da Extração do Sal, o Siesal, e o da Indústria de Moagem e Refino de Sal, o Simorsal.
Nas três páginas do ofício, Salles escreveu que “as autoridades públicas estão aplicando penalidades de multas milionárias às salinas”, “instaurando inquéritos civis e determinando a remoção das estruturas da área”, algo que ele considerou “tecnicamente inviável” – sem, no entanto, explicar como havia chegado a tal conclusão.
As multas e inquéritos eram consequências da operação Ouro Branco. Coordenada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, ela foi deflagrada em fevereiro de 2013 para fiscalizar todas as 35 salinas em funcionamento nos três estuários. O Ibama emitiu 116 autos de infração contra as empresas, que somam mais de R$ 80 milhões em multas, por diversas irregularidades ambientais.
O mesmo argumento é usado na justificativa do Ministério da Economia. Se fossem levadas a cabo as ações dos órgãos ambientais para a remoção das ocupações em APPs, “restaria inviabilizada a atividade e comprometida a produção do maior parque salineiro do Brasil”. Ou seja, as exigências que o Ibama fazia iriam quebrar a cadeia produtiva do sal no Rio Grande do Norte, que abastece não só o mercado alimentício como também a indústria de química fina do Brasil e de outros países. Salles e Guedes compraram pelo valor de face o choramingo do empresariado.
Esta reportagem faz parte do Projeto Boiada, uma parceria entre Intercept e Observatório do Clima para acompanhar o desmonte acelerado das políticas socioambientais.
Até Temer negou
A partir de 2017, e ao longo de mais de dois anos, diversos órgãos buscaram um acordo com os empresários do sal – o Ibama, o Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte, o Idema, e o Ministério Público Federal, o MPF.
A ideia era firmar um termo de ajuste para que aproximadamente metade das áreas de proteção fosse sendo desocupada paulatinamente, ao longo de até dez anos, para iniciar a recuperação do ecossistema. Seria dada prioridade à remoção de estruturas como postos de combustíveis e diques de lavagem de automóveis.
As salinas potiguares se localizam em estuários de rios. Quando a maré enche e saliniza as águas fluviais, bombas as puxam para diques de decantação. Ali, a indústria espera que o sol e o vento evaporem a água até que reste apenas sal marinho. Em seguida, o produto é levado para passar por processos de moagem e refino.
“Era uma ideia de um acordo ‘nem tanto ao céu, nem tanto à terra’, viabilizando a manutenção das salinas e começando a desocupar as áreas prioritárias”, relembrou Josivan Nascimento, assessor técnico do Idema. Mas os acordos foram negados pelos empresários.
Em vez de resolver os problemas que causavam ao meio ambiente, os empresários buscavam resolver apenas o deles mesmos. Para isso, já haviam iniciado seu lobby em Brasília. O ponta-de-lança da estratégia era Beto Rosado. Herdeiro de uma das famílias mais tradicionais da política potiguar, Rosado está em seu segundo mandato na Câmara Federal e fora colega de bancada de Bolsonaro no Progressistas, antigo PP.
Rosado tem suas bases eleitorais em regiões de produção salineira. E é de lá que vem o dinheiro que o levou a Brasília. Em 2014, ao menos duas empresas lhe fizeram doações: Marisal Ltda., com R$ 6 mil, e Norte Salineira S/A, com R$ 10 mil. Quatro anos depois, quando as doações empresariais já eram proibidas, a campanha bateu à porta de José Hamilton Mandarino de Mello, presidente da Salinas do Nordeste, que doou R$ 20 mil.
‘Eu fui um dos redatores do decreto’, afirma diretor de sindicato da indústria do sal.
Airton Torres, que acompanhou Beto Rosado em boa parte das reuniões em Brasília para preparar a edição do decreto, é diretor da Salinas do Nordeste. A simbiose era tal que Renato Fernandes, um dos empresários envolvidos no processo e diretor do Simorsal, confirma: “Eu fui um dos redatores do decreto”.
Um passeio pelas redes sociais do deputado narra todo o processo. Ainda em 2017, meses após Ibama e Idema finalizarem o relatório sobre a ocupação das salinas em áreas proibidas, Rosado esboçou requerimento de um decreto presidencial “que transforme o sal em um bem de utilidade pública”.
Ele também começou a tratar do problema dos empresários com o governo de Michel Temer. Rosado se reuniu com assessores jurídicos do Planalto em outubro, o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Antônio Imbassahy, em novembro, e o ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, em dezembro. Temer já havia recebido o deputado Rosado em setembro, ocasião em que também pôde ouvir os queixumes dos salineiros.
O decreto não sairia no mandato-tampão do emedebista. Um dos documentos que recebi explica a provável razão disso. Questionada em 2018 sobre o caso, a presidente do Ibama, Suely Araújo, confirmou em ofício endereçado à Procuradoria-Geral da República que havia recebido consultas informais a respeito de um decreto para atender aos salineiros. E que não gostou do pedido, “considerando o potencial risco para a conservação e manutenção das áreas de mangue e estuários”.
Mas a situação mudaria rapidamente com a chegada ao poder do capitão reformado do Exército e de sua turma de generais de pijamas e ministros dispostos a “passar boiadas” sobre as leis.
Sob Bolsonaro, em tempo recorde
No começo de 2019, após a posse de Bolsonaro, as negociações entre empresários, autoridades ambientais e MPF estavam paradas. No meio tempo, o Ministério Público havia aberto processos judiciais resultantes da operação Ouro Branco, cobrando a desocupação das áreas. Preocupados, empresários e seus políticos lobistas voltaram a peregrinar pelos gabinetes de Brasília.
Com o bolsonarismo reinando, o pleito pelo decreto encontrou apoio para deixar as gavetas rapidamente. Em março de 2019, pouco mais de um mês após receber um grupo de empresários no seu gabinete em Brasília, Beto Rosado bateu na porta do então subchefe de assuntos jurídicos da Presidência, Jorge Oliveira.
Presenteado mais tarde por Bolsonaro com o cargo vitalício de ministro do Tribunal de Contas da União, Oliveira recebeu o parlamentar, que levou à reunião a então prefeita de Mossoró, Rosalba Ciarlini, do Progressistas, e Airton Torres, da Salinas do Nordeste. Em abril, o trio seria recebido no gabinete de Ricardo Salles, que, segundo Rosado escreveu no Facebook, teria se comprometido a encaminhar a produção do decreto – o que cumpriu à risca.
Em maio, Rosado se encontrou com o próprio Bolsonaro para tratar do decreto desejado pelos produtores de sal. Para temperar o encontro, levou como presente uma lata de flor de sal produzida por uma das empresas interessadas na medida. Rosado e o presidente já se conheciam desde os tempos de Bolsonaro na Câmara. Além de terem sido companheiros no PP, chegaram a assinar em conjunto um projeto de lei que obrigaria as empresas de telecomunicações a instalarem bloqueadores de sinal telefônico em presídios, em 2015.
Aquele projeto não foi adiante, mas a amizade entre Bolsonaro e Rosado ajudou anos depois, quando o deputado de extrema direita do baixo clero se tornou presidente. O processo administrativo para a edição do decreto andou rápido. Passou por instâncias dos ministérios do Meio Ambiente e da Economia, sempre com pareceres favoráveis, em menos de cinco meses.
O decreto foi finalmente assinado em junho. Ao lado do presidente e de outros próceres bolsonaristas como o ministro Onyx Lorenzoni e do então deputado federal e hoje ministro das Comunicações, Fábio Faria, do PSD, Rosado se desdobrou em agradecimentos. “Não existem mais caciques na política. Quem chegar no governo Bolsonaro e tiver uma proposta, uma coisa correta que vai colocar o Brasil pra frente, vai ser atendido”, exaltou.
Eu procurei Beto Rosado para que comentasse seu papel na edição do decreto e sua relação com as salineiras. Ele não quis conceder entrevista. Já o Ministério da Economia preferiu jogar o problema no colo de Ricardo Salles. “No que se refere exclusivamente às competências do Ministério da Economia, notadamente, no caso, aquelas relacionadas à política de desenvolvimento da indústria, não foram identificados óbices à proposição”, justificou a pasta comandada por Guedes, via assessoria de imprensa.
“Considerando que o Ministério do Meio Ambiente é órgão competente para tratar da política de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, e das estratégias, mecanismos e instrumentos econômicos e sociais para o uso sustentável dos recursos naturais, sugerimos procurá-lo para que se manifeste acerca de eventuais questões técnicas relacionadas ao mérito ambiental da proposta”, argumentou a nota do Ministério da Economia.
Obviamente, eu enviei uma série de perguntas à pasta que Salles comandou até junho passado – ele se demitiu para não ser preso por ordem do Supremo Tribunal Federal. Não houve resposta. Procurei igualmente o ex-ministro e a Presidência da República, que também se calaram.
Ilegal e desnecessário. E daí?
O decreto produzido por Ricardo Salles, endossado por Paulo Guedes e assinado por Jair Bolsonaro diante de lobistas felizes ignora solenemente o que determina a legislação ambiental. Para começar, o Código Florestal – usado para justificar a mamata presenteada aos empresários potiguares do sal – só permite que APPs sejam ocupadas por atividades de interesse social quando “inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento”.
Não é o que ocorre no caso das salineiras do litoral do Rio Grande do Norte, como deixou claro o procurador da República Emanuel Ferreira, do Ministério Público Federal. Integrante da Procuradoria Regional do Meio Ambiente, ele atua há 8 anos na região das salinas e já ajuizou uma ação pedindo a suspensão do decreto.
“O Código Florestal é bem claro. Tem que estar demonstrado no processo administrativo que não há alternativa [à concessão do status de atividade de interesse social]”, ele me explicou. “Mas o processo [que embasou o decreto] não tem um estudo, uma prova técnica, uma perícia que comprove o que a lei exige”.
Ferreira prossegue: “Não foi dado nenhum peso à proteção ao meio ambiente. O que tem [no processo] são apenas os pedidos das próprias salinas. É um decreto que segue a linha da política de desmonte ambiental do atual governo”, avaliou.
Mas a justiça negou o pedido do MPF em duas instâncias. Ferreira recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, após ver sua ação derrotada na 10ª vara federal de Mossoró pelo juiz Lauro Henrique Lobo Bandeira e no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Recife.
Segundo ponto: ao longo de sete anos de trabalho, técnicos de carreira do Idema e do Ibama identificaram que as salinas em APPs representam apenas 10,7% dos empreendimentos para produção do sal marinho. Ou seja, a atividade poderia sobreviver sem destruir o meio ambiente.
Diretor-executivo do Simorsal, Renato Fernandes me disse acreditar que o decreto não fere dispositivos legais nem causa impacto ambiental. “Não há ninguém mais interessado em manter o meio ambiente seguro do que nós, que dependemos disso para o nosso negócio”, jurou-me. “O decreto do presidente ajudou bastante, mas ainda precisamos de mais outros dispositivos legais, como decretar o sal marinho como bem público e um marco regulatório de fato”, ambicionou.
Fernandes também me garantiu que as empresas têm ações de recuperação ambiental, mas ecoou Salles ao falar em “áreas irrecuperáveis” – a ocupação das áreas para a extração de sal remonta ao século 17. “Algumas pessoas não entendem bem como funcionam as salinas, todo o histórico que começa em 1600. Não temos como dizer que é possível recuperar uma área assim”, disse ele, sem embasar seu argumento.
Não é o que pensam técnicos de Idema e Ibama. A proposta dos órgãos ambientais e do MPF, apresentada aos empresários em 2017, é clara ao afirmar que a recuperação é possível. Justamente por isso, elaboraram um termo para que as empresas apresentassem planos de recuperação de áreas degradadas. “A ideia era manter o ecossistema vivo, com todas suas funções ambientais”, lamentou Nascimento, do Idema.
Nem mesmo o decreto presidencial, porém, garante que os salineiros se mantenham indefinidamente nas áreas de preservação. Em 2021, o Idema voltou à carga e emitiu um termo de referência para que todas as salinas apresentem relatório de avaliação ambiental. Trata-se de parte obrigatória do licenciamento ambiental, que segue sendo necessário para o funcionamento delas.
“A gente percebe, nas reuniões com os empresários, que eles recebem pressão do mercado, em especial de importadores, para que o meio ambiente seja preservado. O decreto pode ter resolvido momentaneamente a questão para os empresários, mas o mercado ficou apreensivo. A imagem que saiu disso é ruim para o próprio setor”, avaliou Nascimento. Algo que o empresariado refuta. “Não temos nenhuma notícia disso”, rebateu o sindicalista Fernandes.
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Fonte: https://theintercept.com/2021/11/01/decreto-bolsonaro-lobby-sal-destruicao-ambiental/
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