Abandonado por Bolsonaro, governador de Santa Catarina é afastado no escândalo dos respiradores

A compra de 200 respiradores fantasmas, revelada em abril de 2020 pelo Intercept, levou ao afastamento do governador de Santa Catarina, o bolsonarista Carlos Moisés, do PSL. Ele foi apeado do cargo nesta sexta-feira, 26, por decisão do Tribunal do Impeachment, um grupo formado por deputados estaduais e desembargadores do Tribunal de Justiça catarinenses.

Para tentar se salvar do impeachment, o bombeiro da reserva eleito em 2018 na onda bolsonarista entregou postos-chave de seu governo a personagens que costumava desdenhar chamando-os de“velha política”. Também cedeu aos desejos do empresariado local e abraçou o negacionismo na gestão da pandemia de covid-19.

Moisés contava que seu recém-estreado pragmatismo o salvaria da guilhotina. Mas, como no caso dos respiradores – que custaram R$ 33 milhões, quitados antecipadamente –, a mercadoria não foi entregue.

O político bolsonarista foi condenado por seis votos – de cinco desembargadores e um deputado – a quatro. Agora, fica afastado do cargo por 120 dias, prazo em que o mesmo tribunal irá decidir pela perda do cargo de governador ou pela absolvição dele.

A vice-governadora Daniela Reinehr, sem partido, assume o comando do estado pelos próximos quatro meses. Ainda mais alinhada a Jair Bolsonaro que Moisés, a maior marca dela nos 34 dias em que esteve à frente do governo, em 2020, foi o recuo constante em ações de combate à pandemia. Reinehr chegou a apagar postagens em redes sociais em que recomendava o uso de máscaras e condenava agressões a jornalistas que cobriam o desrespeito às regras de isolamento.

Mas o que mais chamou a atenção foi a resistência dela em criticar o pai, Altair Reinehr, que apoia abertamente o nazismo.

O abraço na ‘velha política’

Para o público catarinense, a mais notável mudança de Moisés foi percebida na atitude dele sobre a pandemia do novo coronavírus. Em março de 2020, ele bradava ter sido um dos primeiros gestores públicos a aplicar medidas de isolamento para restringir a circulação do novo coronavírus. Mesmo que, àquela época, a doença ainda não pressionasse a capacidade hospitalar. “É dever do estado e de todos os cidadãos defender os idosos e pessoas mais vulneráveis à covid-19”, dizia o bombeiro da reserva.

Um ano depois, pacientes de covid-19 morrem sem atendimento por falta de leitos em UTIs ou são transferidos para outros estados. Enquanto isso, shopping centers, praias e comércio continuam abertos. Preocupado em sobreviver ao segundo processo de impeachment, o governador colocou o “dever” em segundo plano.

A coragem que Moisés havia demonstrado nos primeiros dias da pandemia sumiu. Em vez disso, ele buscou desesperadamente acenar ao grande eleitorado bolsonarista do estado. Ficou da fora da lista de 20 governadores que assinaram carta ao presidente pedindo medidas mais duras contra o coronavírus.

Quando recebeu o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, o governador fez questão de reafirmar a jornalistas seu alinhamento ao governo federal. O problema é que, a essa altura, o bolsonarismo já decidira descartar Moisés, como fez com o fluminense Wilson Witzel, o ex-juiz Sergio Moro e a operação Lava Jato. O filho 03, Eduardo Bolsonaro, chegou a manifestar publicamente sua simpatia por Daniela Reinehr.


Atirando para todos os lados, o governador também mandou às favas os escrúpulos e buscou se aliar a grupos que costumava criticar e chamar de “a velha política”. Além disso, cedeu à pressão do empresariado local por regras frouxas de isolamento social.

A estratégia não deu certo para o bombeiro e custou vidas aos catarinenses. No mesmo dia do afastamento de Moisés, o estado de 7,1 milhões de habitantes bateu recorde diário de mortos: 210 nomes foram acrescentados à lista de vítimas do novo coronavírus.

O sistema de saúde está em colapso há um mês. No oeste do estado e na capital Florianópolis, poltronas e uma enfermaria da endoscopia viraram leitos para vítimas da pandemia. O consumo de oxigênio hospitalar aumentou 2.000%.

Em meio ao caos, Moisés se escondeu. Ele só voltou a falar da pandemia em público em 17 de março, num evento que reuniu os três governadores do Sul do país. Ele havia sumido da vista dos catarinenses em dezembro de 2020, após decidir flexibilizar as regras de isolamento nas festas de fim de ano.

Os dois processos de impeachment contra Moisés foram resultado da pressão política provocada pelo escândalo de corrupção na compra de respiradores fantasmas para o combate à covid-19, revelado pelo Intercept. Em 2020, o ex-bombeiro chegou a ser afastado do cargo por 34 dias.

Mimetizando a aproximação de Jair Bolsonaro ao Centrão, o Moisés 2.0 estreou assim que retomou a cadeira de governador, em novembro de 2020. Distribuiu cargos para cair nas graças do deputado Julio Garcia, do PSD, um dos políticos mais poderosos de Santa Catarina. A aliança entre eles foi selada no início daquele mês, no gabinete da presidência da Assembleia Legislativa, a Alesc.

Garcia foi o articulador do primeiro pedido de impeachment, como contamos em setembro de 2020. Desde janeiro, ele usa tornozeleira eletrônica, após ser afastado da presidência da Assembleia, denunciado por corrupção e formação de quadrilha na Justiça Federal.

Moisés nomeou um aliado do deputado atrás do outro. O ex-chefe de gabinete de Garcia, Eron Giordani, se tornou secretário da Casa Civil. Giordani é um soldado do PSD de Garcia e foi saudado pelo governador como “um importante articulador político na Assembleia”, alguém que “resgataria a verdade” no processo de impeachment.

Renata Giordani, esposa do secretário, foi nomeada para cargo no gabinete da presidência da Alesc, então comandada por Julio Garcia. O novo homem forte do governo traz no currículo uma denúncia por receber propina. Segundo a acusação, houve corrupção em contrato para compra de máquinas na época em que Giordani era chefe de gabinete do ex-prefeito de Chapecó, José Caramori, do PSD, em 2016.

José Milton Scheffer, do PP, um dos quatro deputados que votou para absolver Moisés no  Tribunal do Impeachment, havia sido agraciado com a liderança do governo na Assembleia. O MDB, dono da maior bancada na Alesc, também ganhou cargos, mudou de lado e viabilizou o adiamento do julgamento, que deveria ter ocorrido em dezembro de 2020.

O emedebista Valdir Cobalchini, que foi relator do processo de impeachment na Alesc, suspendeu a audiência em dezembro do ano passado cobrando mais provas. Nesse meio tempo, o partido embarcou no governo e emplacou os deputados estaduais Altair Silva na secretaria da Agricultura e Luiz Fernando Vampiro na da Educação. O próprio Cobalchini estava cotado para assumir uma secretaria.

Garcia-corpo

Julio Garcia, a quem Carlos Moisés se abraçou para tentar escapar do impeachment, usa tornozeleira eletrônica e é acusado de montar uma ‘uma extensa e complexa máquina de fraudes’ pelo Ministério Público Federal.

Foto: Daniel Conzi/Agência AL

Uma pilha de cadáveres crescendo rápido

Enquanto a “nova” e a “velha” política se acertam nos gabinetes, a população catarinense assiste à escalada das mortes por covid-19 no estado. Já são 10.318 vidas perdidas desde o começo da pandemia. Em 26 de março, o estado registrou o maior número de mortes em 24 horas em toda a pandemia: 210. Superou, assim, o recorde quebrado na véspera – 187 óbitos. A média móvel de mortos em uma semana, que era de 39,5 no começo de janeiro, triplicou em março e chegou a 134,8 ao dia. Enquanto isso, os leitos de UTI lotaram e a fila de espera chegou a quase 500 pacientes.

O governo catarinense nega que mortes ocorreram por falta de assistência médica, mesmo diante das evidências. Obrigado por decisão judicial, passou a informar ao Ministério Público estadual, o MPSC, os mortos que haviam pedido transferência no serviço de regulação de leitos. É a lista das mortes na fila da UTI. As informações apontam 233 mortos nessa situação entre janeiro e 22 de março deste ano.

Já o portal de dados abertos do governo catarinense registra o disparo nas mortes fora de UTIs em fevereiro de 2021. No final daquele mês, elas ultrapassaram pela primeira vez os óbitos de pacientes que chegaram a ser internados em tratamento intensivo. É possível que muitas dessas vítimas tivessem indicação para tratamento em UTI – mas não havia lugar.

Março, que ainda não acabou, já é o mês mais violento da pandemia em Santa Catarina, com quase o triplo das mortes de fevereiro.

Até 26 de março, houve 1.610 sepultamentos de vítimas da covid-19 que morreram fora de UTIs. Outras 983 pessoas morreram durante tratamento intensivo. Mas o governo informou ao MP um número menor: 194 óbitos na fila da UTI.

O mês de março já é o mais violento da pandemia em Santa Catarina, com 2.780 mortes até o dia 26, quase o triplo dos 1.091 óbitos de fevereiro. Esta semana, o estado atingiu a marca de 10.318 mortes. Quase a metade (46%) delas foram registradas nos três primeiros meses de 2021.

Por ironia, a guinada de Moisés o reaproximou do seu criador, Jair Bolsonaro. Há poucos dias, o secretário de Saúde de Santa Catarina, André Motta, soltou uma frase digna do presidente, um contumaz negacionista da ciência: “lockdown percebe-se claramente que não funcionou em lugar nenhum do mundo”, disse Motta em entrevista à Globonews. Questionamos o governo sobre qual o estudo que o secretário teria se baseado para essa afirmação, mas não tivemos resposta.

A mudança de Moisés em relação à pandemia fica clara quando colocamos frente a frente duas declarações dele a respeito. Em março de 2020, ele afirmava em redes sociais que “nada vale mais do que uma vida humana”. Atualmente, considera que “pandemia não é só saúde, pandemia é a [secretaria da] Fazenda, que tem que ser ouvida”.

Mas nem mesmo os recordes sucessivos de mortes – inclusive de gente que não conseguiu ser atendida como deveria – provocam atitudes em quem deveria tomá-las. No Ministério Público do estado, o MPSC, o procurador-geral, Fernando da Silva Comin, a quem cabe abrir investigação contra o governador do estado, nada fez para pedir medidas mais efetivas na pandemia durante o colapso na saúde.

Curiosidade: em maio de 2019, o deputado Garcia, que garantiu a existência da versão 2.0 do governo Moisés, achou um lugar para Rafael da Silva Comin, irmão do procurador-geral, na Secretaria de Relações Institucionais da Alesc.

Assim, a única ação apresentada contra o governo relacionada à pandemia saiu da 33ª Promotoria da Saúde em conjunto com a Defensoria Pública do estado, apontando a omissão de Moisés e do secretário da Saúde, André Motta.

Desembargador que criticou lockdown é sócio do deputado-réu Julio Garcia, o novo fiador do governo Moisés.

Na sua decisão, o juiz Jeferson Zanini falou em “ineficiência do estado” e “interesse econômico” nas ações do governo e determinou que a palavra final sobre restrições na pandemia deveria seguir os pareceres da equipe técnica em vez da “retomada de atividades sociais e econômicas sem critérios técnico-científicos”.

O governo recorreu. Graças a uma manobra da procuradoria-geral do estado, o pedido foi direto para o presidente do Tribunal de Justiça, Ricardo Roesler (que também presidiu o Tribunal de Impeachment) que colocou a decisão nas mãos do 1º vice-presidente, o desembargador João Henrique Blasi, apontado em inquérito da Polícia Federal como sócio do deputado Garcia (ele de novo) em uma lancha e padrinho de indicações políticas. Blasi foi deputado estadual pelo MDB entre 1995 e 2011.

A relação de amizade entre desembargador e deputado é retratada com fotos em churrascos, como mostra um dos registros da investigação do Ministério Público Federal. Os procuradores da República afirmam que Garcia montou “uma extensa e complexa máquina de fraudes, desvio e corrupção espraiada pela Administração Pública catarinense”.

Blasi aceitou o recurso do governo. Para ele, “o Estado de Santa Catarina invoca grave lesão à ordem econômica, ponderando, em suma, que o Coes [Centro de Operação de Emergências em Saúde] poderá optar pela implementação de lockdown, afetando gravemente a economia local, com reflexos deletérios na receita estadual”.

 A fuga após as perguntas

Após entrarmos em contato com o deputado Julio Garcia para lhe fazer perguntas para esta reportagem, na quarta-feira, 24 de março, ele anunciou seu afastamento do cargo de deputado por 60 dias. Ele não respondeu às perguntas que lhe enviamos.

Em seu lugar, quem deve assumir é o segundo suplente Jean Kuhlmann. Em 2019, Kuhlmann foi condenado em primeira instância por manter funcionária fantasma em seu gabinete na Assembleia. Ele recorreu às instâncias superiores e reverteu a decisão.

Ainda em 24 de março, antes do afastamento, questionamos o então governador Carlos Moisés sobre o motivo das decisões tomadas na pandemia em 2021 serem completamente diferentes às aplicadas em 2020. Em nota, o governo citou medidas de limitação de horários para o comércio e que “trabalhou para desenvolver e aprimorar ferramentas que permitem o acompanhamento de indicadores estaduais e regionais e balizam as decisões ao longo do processo”.

Mesmo com essas ferramentas indicando um colapso no sistema de saúde, com centenas de pacientes morrendo à espera de leitos de UTI, o governo não determinou o fechamento total de comércio e praias, como havia feito no ano passado.

Moisés se recusou a comentar a situação de Julio Garcia. A nota dele afirma que “não há indicações do deputado Julio Garcia no governo”. Diz, ainda, que Eron Giordani “é pessoa reconhecidamente capacitada no meio político de Santa Catarina”.

Sobre a possível troca de cargos para partidos que antes faziam oposição para tentar se livrar do segundo processo de impeachment, a nota do governo afirma que todas as suspeitas contra Moisés foram derrubadas ao longo do processo.

A assessoria do MPSC informou que a instituição “vem acompanhando desde abril do ano passado a política pública implementada pelo Estado para o enfrentamento da covid-19”. No entanto, não citou qualquer ação apresentada pela PGJ contra o governo Moisés em 2021, quando, mesmo após pedidos de lockdown por órgãos de controle, o governo manteve o estado sem restrições aos comércio e o número de mortes bateu recordes com o colapso na saúde.

Sobre a nomeação do irmão do procurador-geral por Julio Garcia, a assessoria respondeu apenas que Rafael da Silva Comin já tinha ocupado um cargo comissionado na Casa Legislativa em 2017, antes do irmão assumir a PGJ e Garcia a presidente da Alesc.

O secretário da Educação Luiz Fernando Vampiro disse que o julgamento do segundo impeachment de Moisés não foi discutido internamente pelo MDB. Falou ainda que tem “boa relação com o governador Carlos Moises” e que os dois estudaram juntos na faculdade de Direito.

Questionado sobre o direcionamento do recurso do governo ao desembargador João Henrique Blasi, o Tribunal de Justiça disse que o recurso foi encaminhado para a presidência por evocar “manifesto interesse público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, como prevê o regimento interno do órgão.

Blasi não quis comentar suas relações com o deputado Julio Garcia. Valdir Cobalchini não respondeu aos questionamentos da reportagem.

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Fonte: https://theintercept.com/2021/03/27/impeachment-carlos-moises-respiradores-fantasmas-santa-catarina/
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