Articulador da fraude dos respiradores de SC lavou dinheiro do golpe com ambulâncias em SP

Um mês e meio após o Intercept denunciar o esquema fraudulento na compra de 200 respiradores pelo governo catarinense, a polícia ainda tenta descobrir o rastro dos R$ 33 milhões pagos de forma antecipada à empresa carioca Veigamed. O dinheiro sumiu rápido, quase todo em 56 operações financeiras entre os dias 3 e 26 de abril. Os equipamentos nunca chegaram.

Parte dessa verba foi parar em contas da Remocenter, uma empresa de ambulâncias de Guarulhos, registrada em nome de um laranja e com longo histórico de contratos com administrações públicas em São Paulo, Minas Gerais e com o governo federal. Mais do que transportar pacientes em estado grave, as investigações indicam que as ambulâncias da Remocenter também funcionam bem para lavar dinheiro.

O esquema foi descoberto depois de revelarmos a compra fantasma de respiradores em abril. Após a reportagem, a compra foi cancelada, os secretários de Saúde e da Casa Civil de Santa Catarina foram exonerados e foram abertas uma CPI e uma investigação do Ministério Público, batizada de Operação Oxigênio, para apurar se há uma organização criminosa por trás dessa negociação.

Nesta segunda, o caso subiu para o Superior Tribunal de Justiça por suspeita de participação do governador Carlos Moisés, do PSL. Cinco envolvidos no esquema foram presos preventivamente, incluindo o ex-secretário da Casa Civil do estado, Douglas Borba; o vereador pelo PSD e presidente da Câmara de Vereadores de São João do Meriti, no Rio de Janeiro, Davi Perini, o “Didê”; o advogado Cesar Augustus Braga, diretor jurídico da Veigamed; e o médico e empresário Fábio Guasti e o seu advogado, Leandro Barros. Pedro Nascimento Araújo, diretor da Veigamed, teve a prisão decretada, mas segue foragido.

Até o ano passado, Fábio Guasti e a esposa, Paula Guasti, eram donos da Remocenter. Hoje, a empresa está nas mãos de Gilmar Furtunato, um ex-funcionário que se apresenta nas redes sociais como “encarregado operacional” da Remocenter. Mesmo sendo único dono, ele não decide nada sem a autorização do casal Guasti. Uma cláusula do contrato social da empresa informa que Furtunato não pode “assumir obrigações seja em favor de qualquer dos quotistas ou de terceiros, bem como onerar ou alienar bens imóveis da sociedade, sem autorização do(s) outro(s) sócio(s)”.

A Remocenter foi o destino de ao menos R$ 2 milhões da compra dos respiradores em Santa Catarina, segundo as investigações. O dinheiro foi transferido em dois depósitos em nome da empresa, cada um no valor de R$ 1 milhão.

O pagamento ocorreu imediatamente após a liberação da verba para os aparelhos, nos dias 3 e 6 de abril. Com a Remocenter, a força-tarefa encontrou ainda uma nota fiscal de prestação de serviço de R$ 5 milhões para a Veigamed em um contrato para remoção de pacientes, também de 3 de abril. Por que uma empresa especializada na venda de produtos como gaze e mobília hospitalar, como a Veigamed anuncia em seu site, precisaria gastar milhões contratando um serviço de ambulâncias é um dos tantos mistérios desse caso.

O casal Fabio e Paula Guasti. Com ele preso, é ela quem toca os negócios da família.

Foto: Reprodução/Facebook

Lavagem laranja

Uma cópia de um processo da Fazenda Nacional encontrado pela polícia na casa dos Guasti aponta que Furtunato, funcionário da Remocenter entre 2010 e 2014, não teria dinheiro para adquirir a empresa e seria um laranja. As contas bancárias relacionadas à Remocenter, reforça o processo, continuaram sendo movimentadas apenas pelo casal Guasti, mesmo após a venda para Furtunato, oficializada em junho de 2019.

“Verificou-se junto ao Banco Central que a empresa é movimentada por Fábio Guasti e Paula Guasti e que Gilmar Furtunato não tinha qualquer lastro para aquisição da empresa, tratando-se apenas de um laranja”, informa o inquérito policial da Oxigênio, força-tarefa que apura o caso dos respiradores.

Esse dono que não manda nem no próprio negócio também não possui imóvel em Guarulhos, sede da empresa, algo curioso para o proprietário de uma organização do porte da Remocenter, que possui ao menos 300 funcionários. Já o casal Guasti tem ao menos três imóveis na cidade – todos bloqueados pela justiça catarinense em maio deste ano, no processo que analisa a fraude dos respiradores. Entre os bens bloqueados estão o apartamento de luxo de 193m² em que os Guasti moram, além de outro apartamento e um terreno avaliados em cerca de R$ 10 milhões.

Procuramos Gilmar Furtunato no telefone informado no site da Remocenter. A atendente pegou o contato da reportagem e ficou de retornar a chamada. Uma hora depois, quem ligou de volta foi a assessoria de imprensa de Fabio Guasti. Em nota, eles informaram que, após a saída do casal, em junho de 2019, Furtunato tinha 180 dias para modificar a natureza jurídica da empresa. O prazo expirou e não houve mudança, então “Fábio Guasti permaneceu contratualmente como responsável pela empresa, até que todas as etapas da transferência de representação da empresa sejam concluídas pelo novo proprietário”.  Essas informações, no entanto, não constam na Junta Comercial de São Paulo ou na Receita Federal.

Além dos R$ 2 milhões repassados a Remocenter, outros R$ 320 mil foram transferidos pela Veigamed para a empresa MMJS, do Mato Grosso, no dia 22 de abril. A MMJS é responsável por uma das duas propostas forjadas na disputa pela venda dos respiradores ao governo catarinense, que teve a Veigamed como vencedora, como revelamos.

Poucos dias depois do pagamento, o dono da MMJS, Mauricio Miranda de Mello, disse à justiça ter se reunido na sede de uma das empresas de Guasti em 8 de abril para negociar a compra de testes de covid-19 para vender no Mato Grosso. No encontro, o vereador Davi Perini teria se apresentado como representante da Veigamed. Ou seja: Miranda, que foi procurar a empresa para comprar testes de covid-19, dias depois recebeu R$ 320 mil da mesma empresa.

Até agora, as autoridades recuperaram R$ 11,8 milhões dos R$ 33 milhões. Quase todo o dinheiro recuperado (R$11,2 milhões) veio da Oltramed, empresa catarinense que estava em processo de venda de 100 mil kits de testes de covid-19 para a Veigamed. Após o caso dos respiradores vir à tona, a Oltramed percebeu que poderia estar sendo envolvida numa fraude e decidiu repassar o dinheiro à justiça e não entregou a carga. Outros R$ 480 mil foram bloqueados da conta bancária da própria Veigamed. Ainda resta saber onde estão R$ 21,2 milhões.

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Funcionário dos Guasti até pouco tempo atrás, Gilmar Furtunato é apontado como laranja pelas investigações e não manda nem na própria empresa.

Foto: Reprodução/Facebook

Uma pilha de irregularidades

A Remocenter foi criada em 28 de setembro de 2006 pelos sócios Fabio e Paula Guasti. O casal também é dono de um shopping em Guarulhos e de outras empresas ligadas a planos assistenciais que oferecem de crédito pré-pago a serviços odontológicos – chamadas Meu Help, Meu Vale, Bem Odonto e Redevale. Nas redes sociais, Fábio Guasti se apresenta como médico “cirurgião geral/gastro” e executivo de sete empresas.

O casal de médicos resolveu investir em transporte de pacientes quando os dois ainda faziam residência, explicou Paula Guasti numa entrevista concedida em 2017: “Percebemos que havia uma carência nessa área e decidimos investir em ambulância”. Atualmente, o site da Remocenter aponta que a empresa tem mais de 300 empregados e uma frota de cerca de 100 veículos.

A empresa atuou por quase dez anos para a prefeitura de São Paulo e ainda mantém contratos com o governo do estado. Até fevereiro deste ano, também prestou serviço ao Centro de Treinamento Paraolímpico Brasileiro. Antes, transportou pacientes para hospitais federais do Ministério da Saúde. Falhas na prestação dos serviços e ilegalidades nas planilhas de pagamento da empresa, no entanto, são apontadas por órgãos de controle desde 2011.

Em São Paulo, em 2016, chegou a ser penalizada com carimbo de “empresa inidônea para licitar com a administração pública” após constatação de uma série de irregularidades nos contratos que mantinha com a prefeitura da capital. Na época, ela tinha sido escolhida para prestar serviços de remoção de pacientes de três hospitais municipais.

A empresa conseguiu reverter a penalidade, foi recontratada e voltou a trabalhar com a prefeitura. Mas um relatório da Controladoria Geral do Município de São Paulo constatou que os preços cobrados estavam “muito acima das cotações de outras empresas”. A Remocenter cobrou 32,5% acima da média das outras concorrentes. Em cinco meses, a Controladoria estimou um sobrepreço de R$ 700 mil.

No ano passado, o Tribunal de Contas do Município encontrou mais problemas. Em um contrato emergencial de 2011, a empresa utilizou uma manobra conhecida como “jogos de planilha”. O golpe consiste em baixar o preço de itens pouco demandados e subir o valor daqueles que têm mais saída, reduzindo o custo geral e levando vantagem sobre as outras empresas em concorrências públicas.

O último contrato da Remocenter com a prefeitura de São Paulo foi suspenso em dezembro. Já o contrato com o governo do estado segue vigente – vale até 2022.

Não que a empresa tenha colecionado problemas apenas em São Paulo. No Rio, em 2012, uma ambulância da Remocenter que servia ao Hospital de Andaraí, na zona norte da capital carioca, foi flagrada transportando material de construção. Em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, o Procon local chegou a receber uma denúncia do Ministério Público do Trabalho que apontou “precariedade dos equipamentos existentes nas ambulâncias, falta de profissionais e/ou profissionais não habilitados”. O Sindicato dos Médicos de Minas Gerais pediu mais de uma vez o rompimento ou adequação do contrato. O processo administrativo contra a Remocenter, no entanto, foi arquivado pelo Procon de Juiz de Fora.

Anônimo até a página 2

Apesar de não aparecer como sócio da Veigamed, foi Guasti quem acertou a compra dos 200 respiradores com o governo catarinense. Ele próprio negociou os valores com o ex-secretário da Saúde Helton Zeferino, afastado após a revelação do escândalo.

Guasti aparece copiado em e-mails desde as primeiras propostas da Veigamed enviadas ao governo catarinense. Mais tarde, ao notificar a empresa pelo atraso dos equipamentos, a Secretaria de Saúde do estado enviou notificação diretamente a ele.

Em 8 de maio, Guasti disse à reportagem que nunca tinha ouvido falar na Veigamed. No dia seguinte, foi alvo de mandado de busca e apreensão que confirmou o envolvimento dele no esquema.

Segundo os investigadores, Guasti, em conluio com o vereador Didê, o advogado Leandro Adriano de Barros e Pedro Nascimento Araújo, diretor da Veigamed, armaram o esquema, usando a empresa carioca como forma de ocultar seus negócios.

A força-tarefa apreendeu ainda uma série de notas fiscais nos endereços de Guasti, relacionando-o diretamente à lavagem de dinheiro. À CPI dos Respiradores, aberta após a primeira reportagem do Intercept sobre o caso, o ex-chefe da Casa Civil Douglas Borba afirmou não conhecer o médico. No entanto, a investigação aponta forte ligação entre Borba e Barros, representante jurídico de uma das empresas dos Guasti. Teria partido do ex-secretário a indicação da Veigamed para a negociação.

Guasti também manteve contato constante com a servidora Márcia Regina Pauli, afastada do governo após o escândalo. O grupo esperava lucrar 100% com a venda dos respiradores para Santa Catarina. Segundo os investigadores, a corretora de câmbio utilizada pelo CEO da Veigamed Pedro Nascimento informou que eles usariam apenas metade dos R$ 33 milhões recebidos do governo de SC para fazer a transação com a China, país de onde seriam importados os respiradores.

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Paula Guasti é o “financeiro” do esquema e participou das transferências de valores do golpe dos respiradores feito junto com a Veigamed.

Foto: Reprodução

Sai Remocenter, entra Meu Vale

Com a prisão de Fábio Guasti, é a esposa dele, Paula, quem segue à frente das empresas do casal. A justificativa de que ela não participou do esquema dos respiradores não parece verdadeira. Segundo documentos obtidos pela força-tarefa, Paula é o “financeiro” e participou das transferências de valores do golpe dos respiradores feito junto com a Veigamed.

Os investigadores encontraram quatro e-mails enviados por Paula, do endereço [email protected], para ela mesma. Uma das mensagens mostra dados bancários do advogado Leandro Adriano de Barros, indicando pagamento de R$ 30 mil a título de “comissão”. Barros foi preso no dia 5 de junho, por suspeitas de ter participado da intermediação da proposta da Veigamed junto à Secretaria de Saúde de Santa Catarina, e os investigadores apuram se a tal “comissão” era na verdade propina por ter ajudado o casal no negócio milionário.

Em outro e-mail de Paula Guasti, há a indicação de pagamento de R$ 160 mil com o registro: “deivis comissão”. Segundo a força-tarefa, esse valor seria para Deivis de Oliveira Guimarães, ex-secretário de Saúde em municípios da Bahia e do Espírito Santo, que também teria atuado como intermediador do negócio da Veigamed com o governo catarinense. Na decisão da justiça para encaminhar o caso dos respiradores para o STJ, o MPSC cita a transcrição de um áudio de Guimarães, enviado em 26 de março, onde ele menciona que o “governador já tinha liberado o processo de aquisição” dos 200 respiradores. Para os promotores, esse é um dos indícios do possível envolvimento de Carlos Moisés no negócio fraudulento com a Veigamed. Em coletiva realizada na tarde de segunda-feira, 22, Moisés negou conhecer os representantes da Veigamed.

Dois dias antes da prisão do marido, em 5 de junho, Paula Guasti assinou uma renovação de um contrato emergencial da Meu Vale, uma das empresas do casal que mais faturou em 2020, com o governo do Pará. A empresa será responsável pelo vale alimentação depositado para todos os 575 mil alunos da rede pública do estado. Vai embolsar R$ 44,5 milhões.

Em abril, a Meu Vale já tinha sido escolhida para administrar cartões de alimentação para cerca de 270 mil estudantes da rede pública paraense, também em contrato com dispensa de licitação e que termina em 8 de julho.

Em Florianópolis, após as primeiras notícias do caso dos respiradores, a prefeitura chegou a anunciar publicamente o rompimento do contrato com a Meu Vale – mas ele não foi encerrado. Há ainda um outro contrato da Meu Vale em Santa Catarina, firmado em março com a prefeitura de São José, na Grande Florianópolis. Neste, a empresa foi contratada também sem licitação por R$ 1 milhão para realizar o serviço de “central telefônica”.

Segundo os investigadores da Oxigênio, o contrato com São José merece ser investigado com atenção por ser mais um “indício que Fábio Guasti está enraizado no estado de Santa Catarina, e sua atuação não se limitou à compra dos respiradores”.

Questionamos a assessoria do casal Guasti sobre as provas apresentadas pelos procuradores da Receita de que Furtunato é um laranja à frente da Remocenter e o envolvimento de Paula em pagamentos de propina no golpe da Veigamed. Ouvimos apenas que “os fatos apontados ainda estão sendo investigados e serão esclarecidos no momento oportuno no processo judicial”.

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Fonte: https://theintercept.com/2020/06/24/articulador-fraude-respiradores-lavou-dinheiro-ambulancias/
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